quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Os encontros de Urariano Mota com patroas e empregadas domésticas



As empregadas e a escravidão

10/11/2014 15:00

Por Urariano Mota, de Recife, no Correio do Brasil

Por caminhos tortos, Joaquim Nabuco teve uma das suas iluminações quando escreveu: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”.

Sim, por caminhos tortos, porque depois de uma frase tão magnífica, de gênio do futuro, Joaquim Nabuco sem pausa continuou, num encanto que esconde a crueldade:

“Ela (a escravidão) espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor…”.

Penso na primeira frase de Nabuco, a da escravidão como característica do Brasil, depois que o Congresso deu um primeiro passo para a superação da herança maldita.

Não quero falar aqui sobre as conquistas legais para as empregadas domésticas, da nova lei sobre a qual os jornais tanto falaram como um aviso: “patroas, cuidado, domésticas agora têm direitos”.

Falo e penso nas empregadas que vi e tenho visto no Recife e em São Paulo.

No aeroporto de Guarulhos eu vi Danielle Winits, a famosa atriz da Globo, muito envolvida com o seu notebook, concentradíssima, enquanto o filhinho de cabelos louros berrava.

Para quê? A sua empregada, vestida em odioso e engomado uniforme, aquele que anuncia “sou de outra classe”, cuidava para que a perdida beleza da atriz não fosse importunada.

Tão natural… os fãs de telenovelas não viam nada de mais na mucama no aeroporto, pois faziam gracinhas para o bobinho lindinho.

Em outra ocasião, numa terça-feira de carnaval à noite, vi no Recife uma jovem à minha frente, empenhada em ver a passagem de um maracatu.

Tão africano, não é?

Junto a ela uma senhora – desta vez sem uniforme, mas carregando no rosto e modos a servidão – abrigava nos braços um bebê.

Os tambores, as fantasias, eram de matar qualquer atenção dirigida à criança, que afinal estava bem cuidada, sob uma corda invisível que amarrava a empregada.

Então eu, no limite da raiva, oferecei o meu lugar à sua escrava sobrevivente, com a frase: “a senhora, por favor, venha com o seu filho aqui para a frente”.

A empregada quis se explicar, coitada, morta de vergonha, enquanto a doce mamãe não entendia o chamamento irônico, pois me olhava como se eu fosse um marciano.

Espantada, parecia me dizer: “como o meu filho pode ser dessa aí?”.

O desconhecimento de direitos elementares às empregadas domésticas, como privacidade, respeito, a falta de atenção para ver nelas uma pessoa igual aos patrões, creio que sobreviverá até mesmo à nova lei.

É histórico no Brasil, atravessa gerações e atinge até mesmo os mais jovens e pessoas que se declaram à esquerda.

É como se estivesse no sangue, como se fosse genético, de um caráter irreprimível.

Até antes delas vão a democracia e a igualdade.

A partir delas é outra história.

Quantas vezes vemos nos restaurantes jovens casais com suas lindas crias, tendo ao lado as escravas, que nem sequer têm direito a provar da bebida e da comida?

Isso nos domingos e feriados, pois esses são os dias das patroazinhas se divertirem.

É justo, não é?

O feminismo se faz para que mulheres sejam cidadãs, mas a cidadania só alcança os iguais, é claro.

Em todas as situações desconfortáveis, se ousamos estranhar, ou agir com pelo menos um olhar atravessado para essa infâmia, recebemos a resposta de que as domésticas são pessoas da família.

Parentes fora do sangue, apenas separadas por deveres, notamos.

É o que se pode chamar de uma opressão disfarçada em laços afetivos.

A ex-escrava é considerada como um bem amoroso, íntimo, mas que por ser da casa come na cozinha e se deita entre as galinhas do quintal.

O que, afinal, é mais limpo que se deitar com os porcos no chiqueiro.

Não estranhem, porque não exagero.

Não faz muito tempo no Recife era assim. E por que estranhar esse tratamento?

Olhem os grandes e largos e luxuosos apartamentos do Rio e de São Paulo, abram os olhos para os minúsculos quartinhos de empregadas, entrem nos seus banheiros, que Millôr dizia serem a prova de que no Brasil empregadas não têm sexo no WC.

Não posso concluir sem observar que os pobres copiam os ricos, e que o tratamento dado às domésticas se estende em democracia para todas as classes sociais.

Menos para as empregadas, é claro. “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”, dizia Nabuco.

Urariano Mota, escritor e jornalista. Autor do romance Soledad no Recife, sobre o assassinato pela ditadura brasileira da militante paraguaia Soledad Barret, grávida, depois de traída e denunciada por seu próprio amante o Cabo Anselmo. Escreveu também O filho renegado de Deus e seu livro mais recente é o Dicionário Amoroso do Recife. Seu primeiro livro foi Os Corações Futuristas, um romance na época do ditador Garrastazu Médici. Na juventude publicou artigos, contos e crônicas nos jornais Movimento e Opinião.

Direto da Redação é um fórum de debates, do qual participam jornalistas de opiniões diferentes, dentro do espírito de democracia plural, editado, sem censura, pelo jornalista Rui Martins.

Texto original: VI O MUNDO

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