sexta-feira, 30 de maio de 2014

O verdadeiro discurso do medo

No Chile, o primeiro ato da derrubada de Salvador Allende desenrolou-se com uma paralisação de transportes seguida de um lock-out do comércio de alimentos.

Wanderley Guilherme dos Santos

Também seguimos inseguros, os empenhados existencialmente nesse fluxo histórico de espetacular transformação da comunidade brasileira. Também seguem meio desorientados os que apostaram na capacidade de um punhado de políticos de boa cepa ensinar ao país que é possível perseguir uma sociedade justa, não obstante os entulhos de um passado oligarca e suas reencarnações tatibitati. Mas incomoda vê-los hesitar diante das vociferações dos antidemocratas de todas as cores. A imagem de meia dúzia de desatinados, entre os quais índios sem teto ou sem oca, expostos a selfies na marquise do Congresso não prenuncia nada engraçado. Muito menos folclóricos ainda são os gigantescos engarrafamentos castigando a população que retorna do trabalho, à conta da intimidação promovida por uns poucos buldogues ameaçadores, fora da linha sindical. São movimentos de carregação aproveitados, bandeiras à vista, por legendas partidárias sem expressão e sem voto, desafio da força bruta ocasional à tolerância democrática.

A democracia é, por certo, um sistema político que garante voz a quem deseja acabar com ela, mas não é um arranjo institucional de espinhela caída a permitir ações que constrangem a maioria da população. O conhecido e histórico oportunismo de certos grupos sociais – trabalhadores em transportes, especialmente de massas, e empregados em saúde pública – e de rótulos partidários sem energia própria podem, parasitando a inércia das instituições legítimas e com divulgação garantida, persuadir a maioria não organizada dos cidadãos que são eles os minoritários. Imprensados entre a balbúrdia com proteção jornalística e o silêncio governamental, ficam os trabalhadores em dúvida sobre se a melhoria em suas condições de vida não constitui imerecida exceção num país aparentemente em ruínas.

Quem conhece o todo e não compartilha informação com os beneficiados comete grave erro de propaganda política. Faz parte da obrigação governamental não apenas fazer, mas fazer saber. Em 27 de maio último, por exemplo, o Senado aprovou proposta tornando legal a expropriação de empresas que explorem trabalho escravo. Não há em nenhum lugar do mundo legislação semelhante. Tal como o programa bolsa-família, essa legislação será em breve copiada por outros países, pois o trabalho escravo não é monopólio de países pobres. Contudo, notícia de tal importância foi relegada a páginas remotas dos diários ou nem mesmo registrada. Do mesmo modo, o imenso planejamento das benfeitorias que serão deixadas pela Copa de futebol, muitas das quais já operando, foi até aqui esmagado por uma das mais estúpidas campanhas jamais patrocinada pelo conservadorismo oposicionista e uisquerdóides de todos os tempos. Pois vai ter Copa, sim, assegurada pela maioria real do país e apesar do paralisante acidente vascular do governo.

Minorias têm direitos, mas não podem ter o poder de subjugar a maioria. Tratá-la como maioria é traição institucional e política. A população trabalhadora tem direito a exigir transportes suficientes e em boas condições, mas previamente tem o direito constitucional de ir e vir. Conta-se que, na China pré-conquista do poder, o Partido Comunista organizava greve de bondes fazendo os transportes rodarem gratuitamente. Não li que jamais os incendiasse e obrigasse os trabalhadores seguirem a pé para suas casas. Já no Chile, o primeiro ato da derrubada de Salvador Allende desenrolou-se com uma paralisação de transportes seguida de um lock-out do comércio de alimentos. Não conheço tratado de política em que tais movimentos prenunciem avanços democráticos. Conheço histórias em que os desfechos foram tiranias longevas.

Há razão para a ansiedade de parte da população e para o desejo de mudança. Já não é tão claro, apesar de destemidos intérpretes e fora os itens costumeiros de melhor transporte, saúde, educação e segurança, o que deseja a significativa maioria da população. Pelo que costuma responder sobre a difusão da violência, o anarquismo sem rumo dos blaquiblocs e aparentados, esplendidamente repelidos, o que a maioria deseja é mudar a sociedade. É importante que as autoridades meditem sobre isso, não se entreguem às interpretações velhacas e tragam segurança jurídica e existencial à maioria. São pagas para isso.

Texto original: CARTA MAIOR

quinta-feira, 29 de maio de 2014

O canto de cisne do PSDB e do DEM

A oposição partidária brasileira carece totalmente das características que permitiram ao PT crescer sem ser poder. PSDB, DEM e PPS são exemplos disso.

Maria Inês Nassif

Por miopia ou má-fé, virou hábito atribuir ao Partido dos Trabalhadores todas as mazelas do sistema político. Marina Silva não teve dúvidas ao acusar o PT de “chavismo” porque seu partido, a Rede, não conseguiu o registro junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a tempo de disputar as eleições presidenciais do próximo ano. A falha apontada pela Justiça eleitoral no processo de formação da nova legenda foi a ausência de mais de 50 mil assinaturas, no total de um milhão exigidos por lei para o seu registro – e, convenhamos, a lei não atribui ao PT a obrigação de colher as assinaturas necessárias para a formação de um partido para Marina. Da mesma forma, a debilidade de partidos já constituídos não decorre de uma ação do PT, mas de uma inação dos próprias legendas.

No atual quadro partidário, apenas o PT mostrou capacidade de existir e se desenvolver fora do poder. Desde a sua fundação, em 1980, até 2003, quando assumiu a Presidência da República pelo voto direto, o partido teve um crescimento contínuo. Foi criado e floresceu na oposição a sucessivos governos.

Tomando por base o aumento da bancada federal petista, nota-se que o partido da presidenta Dilma Rousseff teve um crescimento atípico em relação aos demais partidos: em 1982, primeira eleição que concorreu, elegeu oito deputados federais; em 1986, 16; em 1990, 38; em 1994, 49; em 1998, 59. Em nenhuma dessas eleições era ou apoiou um governo.

Em 2002, quando elegeu Luiz Inácio Lula da Silva pela primeira vez para presidente, sua bancada deu um salto, como ocorreu com os demais partidos que chegaram à Presidência no pós-ditadura (PMDB, com José Sarney, em 1985; Collor e seu PRN em 1989 e FHC nos mandatos 1995-1998 e 1999-2002). O PT, no ano em que Lula venceu, pulou de 59 para 91 deputados federais. Mas, ao contrário do que ocorreu com os demais, a única eleição em que reduziu a sua bancada foi em 2006, quando estava no poder: elegeu Lula para o segundo mandato, mas pagou a conta do escândalo do escândalo do chamado Mensalão, ao obter menos votos para a sua bancada na Câmara dos Deputados. Nas eleições de 2010, que levaram Dilma Rousseff ao poder, aumentou ligeiramente sua bancada federal – para 86 deputados -, embora ainda não tenha recuperado o que obteve no boom eleitoral de 2002.

Salvo se errar muito a mão no processo de institucionalização partidária, o PT tende a se manter importante na política brasileira independentemente de ser governo e oposição: tem eleitorado próprio e ainda mantém uma certa organicidade com setores sociais. Essas variáveis garantem que a legenda não se tornará desimportante se descer da ribalta para a arena política, como aconteceu com o PSDB e seu fiel escudeiro, o DEM, ex-PFL. Se aprofundar a dependência que hoje já tem de políticos que dominam clientelas políticas e têm perfil muito próximo ao dos partidos tradicionais, essa vantagem comparativa que possui em relação aos demais tende a desaparecer.

A oposição partidária brasileira carece totalmente das características que permitiram ao PT crescer sem ser poder. Quanto mais fica longe do governo federal, mais dificuldades as lendas que são de oposição têm de sobreviver. O PSDB, o DEM e o PPS são a expressão recente mais acabada das fragilidades de um sistema que tende a concentrar apoios políticos nos partidos de governo e condenar os partidos de oposição à autodestruição.

O PSDB e o DEM (ex-PFL), aliados desde a primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, e separados apenas por um breve momento, nas eleições de 2002, vivem esse fenômeno. Ambos incharam nos governos tucanos, quer por aumento de votos, quer pela liberalidade da lei, que permitia aos eleitos mudarem de partido quanto bem entendessem. Em 1990, na primeira eleição para a Câmara dos Deputados enfrentada pelo PSDB, criado de um racha do PMDB em 1987, o partido fez 38 deputados, mesmo na oposição – mostrava alguma musculatura na origem, portanto. Em 1994, junto com o presidente Fernando Henrique, elegeu uma bancada de 62 parlamentares. A partir da eleição, exerceu todo o poder de atração que um partido governista pode ter sobre as bancadas de partidos derrotados. Agregou votos obtidos por amplas alianças eleitorais, puxadas pelo fato de estar no poder, e adesões pós-eleitorais de parlamentares que não queriam ficar na oposição.

De 1995 a 1997, logo depois das eleições que deram o primeiro mandato a FHC, migraram para o PSDB um governador, três senadores, 34 deputados federais, 79 deputados estaduais e 124 prefeitos, segundo levantamento feito pelo cientista político Celso Roma. Em 1998, eleição que deu o segundo mandato a FHC em primeiro turno, o PSDB elegeu uma bancada de 99 deputados.

O poder de atração governista quase levou os dois partidos que dividiam a chapa presidencial, o PSDB e o PFL, a um processo de autofagia. Em 1994, o PFL, que nunca tinha estado fora do poder, elegeu uma bancada de 89 deputados (contra 83 em 1990). Em 1998, fez 105 deputados. Ambos disputaram, ao longo dos dois anos de mandato, parlamentares que desejavam migrar para partidos melhor considerados no trato com a máquina administrativa do governo.

A glória vivida pelos dois partidos nos oito anos de governo de FHC começou a se mostrar que efêmera já no primeiro turno de 2002, quando a bancada federal dos partidos foi definida junto com os dois candidatos presidenciais que foram para o segundo turno, Luiz Inácio Lula a Silva (PT) e José Serra (PSDB). Dos 99 deputados tucanos eleitos em 1998, sobraram 70; o PFL viu despencar sua bancada de 105 para 84 deputados. Em 2006, quando Lula se reelegeu, o PSDB fez apenas 66 deputados; o PFL, 65. Nas eleições de 2010, quando Dilma Rousseff foi eleita para exercer um terceiro mandato pela legenda petista, os dois principais partidos de oposição tinham 54 deputados (PSDB) e 43 deputados (o ex-PFL, já DEM na época). Com a formação do PSD, no final de 2011, e a dos recentes PROS e Solidariedade, o PSDB perdeu mais oito deputados e tem, hoje, uma bancada de 46 parlamentares na Câmara dos Deputados. O DEM ficou com uma bancada inexpressiva, de 25 parlamentares. E o PPS, fiel escudeiro tucano mas muito pequeno, tornou-se nada além do que um partido nanico: elegeu 12 deputados e hoje tem 7.

Esse encolhimento tem mais consequências do que a mera capacidade de atuação da oposição no Legislativo. A análise sobre o canto do cisne do PSDB e do DEM continuará na próxima coluna.

Texto original : CARTA MAIOR

terça-feira, 27 de maio de 2014

Não existia combate à corrupção política antes do governo Lula

Lula e Dilma são hoje acusados de fazerem pouco justamente por aqueles que não fizeram nada além de aparelhar o Estado para fins partidários.

Antonio Lassance

A corrupção ainda é um grave problema no Brasil porque o combate à corrupção ainda está em sua infância. Tem pouco mais de 10 anos.

É a partir do governo Lula que se cria a Controladoria Geral da União; a Polícia Federal multiplica seu efetivo e o número de operações; e as demissões de servidores envolvidos em ilícitos se tornam regra, e não exceção.

É bem verdade que, antes, já existiam a Polícia Federal, o Ministério Público e uma Corregedoria-Geral da União. Mas alguém conhece alguma estatística relevante dessa época? Não existe. O combate à corrupção no governo FHC é traço.

A única estatística mais polpuda daquela época é a do ex-procurador-geral da República de FHC, Geraldo Brindeiro, que, até 2001, tinha em suas gavetas mais de 4 mil processos parados - fato que lhe rendeu o apelido de “engavetador-geral da República”.

De 2003 a 2013, compreendendo os governos de Lula e Dilma, a expulsão de servidores acusados de corrupção quase dobrou, passando de 268, em 2003, para 528, em 2013.

Gráfico 1 - Servidores expulsos do serviço público (2003-2013)
Dados da CGU, disponíveis no Relatório de acompanhamento das punições expulsivas aplicadas a estatutários no âmbito da administração pública federal.

As operações da Polícia Federal saltaram de 9, em 2003, para mais de 200, a partir de 2008 (dados da Polícia Federal http://www.dpf.gov.br/agencia/estatisticas).

Gráfico 2 - Operações da Política Federal e número de servidores presos (2003-2012)
Fonte: dados da Polícia Federal, em gráfico produzido em estudo do Instituto Alvorada:

Antes de 2003, se os escândalos envolvessem políticos, aí é que não acontecia nada vezes nada. Apenas dois casos podem ser citados com algum destaque na atuação da PF.

O primeiro foi a prisão de Hildebrando Pascoal, em 1999. Hildebrando era deputado pelo então PFL (hoje DEM) no estado do Acre e acabou condenado por chefiar um grupo de extermínio. Ficou célebre pela sessão de tortura em que uma pessoa teve os olhos perfurados; as pernas, os braços e o pênis amputados com uma motosserra; e um prego cravado na cabeça.

O outro foi o caso Lunus, a operação da PF de março de 2002 que vasculhou a sede da construtora Lunus, de propriedade da governadora do Maranhão, Roseana Sarney, então no PFL. Naquele ano, Roseana era candidata à Presidência da República e estava bem melhor posicionada nas pesquisas do que o candidato do PSDB, José Serra. A operação foi coroada de êxito: criou um escândalo que sepultou a candidatura de Roseana.

O PSDB, que se diz contra o aparelhamento do Estado para fins partidários, tinha à frente da PF o delegado Agílio Monteiro Filho, que se candidataria a deputado federal pelo PSDB no mesmo ano de 2002.

Não existia combate à corrupção política antes de 2003. Isso é coisa do Lula e dessa tal Dilma Rousseff, hoje acusados de fazerem pouco justamente por aqueles que não fizeram nada além de aparelharem o Estado para fins partidários.

(*) Antonio Lassance é cientista político

Texto original: CARTA MAIOR

domingo, 25 de maio de 2014

Queimar a Marca Brasil virou estratégia eleitoral

antonio barbosa filho

DELFT (Países-Baixos) - Estudiosos de marketing em todo o mundo dedicam-se a um campo relativamente novo nesta área, que é a criação e as características da chamada “nation brand” ou “marca-país”. Já em 1965, pesquisas aplicadas mostraram que o consumidor dá avaliações diferentes a um mesmo produto que lhe é oferecido, dependendo do rótulo “fabricado em…”, ou seja, ele leva em consideração a localidade de origem na hora de decidir uma compra.

A partir deste dado, muitos estudos se seguiram, e o conceito de “marca-país” passou a ser discutido seriamente como fator importante no comércio e na propaganda mundiais. Está consolidada, por exemplo, a distinção entre “identidade nacional” (conjunto dos elementos que dão personalidade a um país, incluindo sua história, geografia, artes, cidadãos famosos, etc.) e “imagem nacional” (a maneira como o país é visto nos demais países e no mundo como um todo). A identidade forma-se historicamente; a imagem pode ser melhorada, assim como pode piorar, e há vários métodos para medi-la tecnicamente.

A imagem é levada em conta, segundo pesquisas, também pelos executivos de grandes empresas com poder de decidir a destinação de investimentos num determinado país. Estudo do Communication Group e do Think Tank You Gov, da Grã-Bretanha, em 2006, concluiu que 92% desses executivos afirmam que a imagem de um país é “fator vital” para suas escolhas. 65% acham difícil decidir por um novo empreendimento apenas baseado em “hard factors” - fatores estritamente numéricos - e 60% afirmam que os “soft factors” ( estilo de vida, arquitetura, artes, etc.) são crescentemente importantes.

Ora, um evento como a Copa do Mundo de Futebol é um momento privilegiado para o país-sede incrementar a sua imagem positiva no exterior, partindo de sua “identidade” e agregando novos valores ao conjunto de sua representação mercadológica. Segundo o professor Marco Antonio Ocke, da USP, “para o país-sede, a Copa mostra-se eficaz ferramenta de promoção da localidade como força econômica com o objetivo de captar investimentos, atrair visitantes, moradores e profissionais, fomentar o comércio, a indústria e as exportações”. Ao organizar o campeonato de 2006, a Alemanha usou-o para reaquecer sua economia, que atravessava fase de baixa depois dos custos da reintegração. Com o slogan “Um mundo entre amigos”, o país gerou cerca de 4 mil empregos por ano desde o anúncio dos jogos, alavancando cerca de 10 bilhões de euros para sua economia. Houve um crescimento geral do PIB e grandes obras e avanços nas áreas esportiva, de turismo e de tecnologia da informação.

A Copa é tal oportunidade de promoção mundial que a Austrália, por exemplo, de onde sairá o terceiro maior contingente de visitantes, cerca de 20 mil, realizará uma série de eventos culturais nas cidades onde sua seleção nacional se hospedará ou jogará, Vitória, Cuiabá, Curitiba e Porto Alegre. O país tem 40 bilhões de reais investidos no Brasil, recebe 20 mil estudantes brasileiros por ano, e quer aproveitar a Copa para ampliar sua presença em todos os setores. Também a Holanda promoverá exposições e eventos paralelos à Copa, como outros países. Cabe ao Brasil esperar que todos os países visitantes levam daqui muito mais do que vão trazer.

O FATOR POLÍTICO-ELEITORAL

Os planos do Governo brasileiro para a Copa de 2014 incluem “agregar novos elementos à imagem do país (economia forte, capacidade de inovação, sustentabilidade) sem deixar de reforçar as características positivas pelas quais o país já é conhecido (hospitalidade, belezas naturais, diversidade cultural)”. No tema “negócios”, o planejamento dos órgãos envolvidos com o mega-evento prevê, internamente, “estimular a descentralização economica, potencializando e atraindo investimentos para as diversas regiões; e estimular a cultura do empreendedorismo a partir da Copa”. Na frente externa, pretende-se “imprimir à imagem dos produtos e marcas brasileiras atributos de tecnologia, qualidade, inovação e sustentabilidade, contribuindo para o aumento das exportações; apresentar o país como fonte de oportunidades para parcerias e soluções sustentáveis de alto crescimento; e atrelar à imagem do país sua importância para a economia e a política internacionais”.

Vê-se que muito além dos campos de futebol, que reunirão centenas de milhares de torcedores em doze capitais de Estados, há muito mais em jogo. O Brasil pode galgar um degrau importante no seu conceito geopolítico e comercial, ampliando sua presença no cenário internacional do século que começa. Ou pode mostrar-se um país carente de organização, governabilidade e eficiência, fatores que valem, no mínimo, tanto quanto a simpatia de seu povo, a beleza de suas paisagens, a riqueza de sua Cultura.

As manifestações de rua contra a realização da Copa não chegam a preocupar, já que são normais em todos os países democráticos. A menos que resvalem para depredações de grande porte, ou causem vítimas brasileiras e estrangeiras - para o que o governo federal, os estaduais e municipais afirmam estar devidamente preparados, inclusive com respaldo de órgãos de segurança dos países participantes - os protestos podem até servir de atestado de nossa estabilidade política, da ampla liberdade de manifestação, da maturidade democrática do país - pontos positivos para a “imagem”.

Esta imagem vinha melhorando ao longo dos últimos dez ou quinze anos. Em termos de eventos, a Copa das Confederações da FIFA, em meados do ano passado, foi um teste muito positivo. A audiência internacional de TV na final entre Brasil e Espanha foi 50% maior do que a final da última Copa do Mundo, entre Holanda e Espanha. Dos estrangeiros que aqui estiveram para a competição, 75,8% disseram em pesquisas que pretendiam voltar ao Brasil para a Copa de 2014. 70% afirmaram que tiveram suas expectativas com o país atendidas ou superadas; 95% aprovaram os estádios; 72% aprovaram os transportes públicos (!), e 88% gostaram dos serviços de táxi. Também foi um sucesso a “disponibilidade dos funcionários nos estádios e outras instalações em dar informações”, elogiada por 89,5% dos turistas-torcedores. Já a qualidade e preço da alimentação nos estádios foi reprovada por 78,2%.

De poucos meses para cá, cresceu o número de reportagens negativas na mídia internacional sobre o Brasil, mas isso resulta do próprio fato de as atenções do mundo estarem se concentrando mais no país. Os problemas mostrados, e os preconceitos revelados, por exemplo, pela revista liberal The Economist, que chamou os brasileiros de “preguiçosos”, ou pelo jornal sensacionalista Daily Mirror, que colocou Manaus entre as cidades mais perigosas do mundo, cujos riscos incluem “cobras venenosas e tarântulas” são reversíveis. Tudo depende da normalidade dos jogos, da recepção aos turistas e torcedores, e do funcionamento razoável da infraestrutura.

O fator mais preocupante é outro: a oposição política ao governo Dilma Rousseff, nesse ano eleitoral, tem demonstrado que o fracasso da Copa do Mundo lhe convém. Ela teme que a vitória da seleção brasileira leve o país a uma tal euforia que isso contagie o governo e influa numa fácil vitória da candidata do PT. Assim, há evidente torcida entre forças políticas de extrema-esquerda, do centro-direita e de pequenos grupos de extrema-direita (aqueles que convocaram marchas em favor de um golpe militar, fracassadas em 22 de março último), para que o Brasil saia derrotado dentro e fora dos gramados. Um caos nas cidades-sede seria de grande proveito para as oposições na campanha eleitoral que se aproxima, e para a qual elas não parecem contar com propostas e candidatos capazes de reverter o favoritismo de Dilma em todas as pesquisas, até agora.

Apostar num fracasso da Copa, porém, envolve muito mais do que o episódio eleitoral. Como vimos, a “marca-país” é algo muito mais sério, importa a várias gerações, e seria lamentável que brasileiros, propositadamente, ajudassem a detonar uma construção tão difícil. Já nos bastam os problemas que realmente temos; não precisamos de outros gerados pela ambição de poder de alguns políticos. Além disso, não há provas de que o resultado da Copa influa decisivamente nas eleições. Já o prejuízo em termos de imagem internacional do país, caso o Brasil falhe, este é previsível cientificamente, e os danos custarão décadas a serem reparados, afetando, inclusive, o próximo megaevento, os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro.

Antonio Barbosa Filho -Jornalista e escritor, autor de A Bolívia de Evo Morales e A Imprensa x Lula – golpe ou sangramento? (All Print Editora). Vive entre a Holanda e o Brasil, e visitou 32 países nos últimos oito anos, alguns várias vezes.

Texto original: LUIZ NASSIF ONLINE

quarta-feira, 21 de maio de 2014

O futebol e a construção de mitos ideológicos no século 21

A lógica do movimento 'não vai ter Copa' é, no mínimo, estranha. As comparações mais esdrúxulas são feitas, sustentadas por um discurso e retórica vazias.

Geniberto Paiva Campos

Os brasileiros adoram esportes. Somos excelentes no futebol, basquete, vôlei, judô, vela, tênis, atletismo, natação, e outros menos votados. Até em alguns esportes considerados inicialmente “estranhos”, fora das competições olímpicas, assumidos como invenções brasileiras – o futebol de salão - e dos cariocas: futebol e vôlei de praia, futevôlei temos mostrado a nossa aptidão em competições internacionais.

Nós, brasileiros, sabemos citar de cabeça nomes de patrícios que se destacaram nessas modalidades. Recitamos a escalão completa das nossas seleções, campeãs de 58 e 70. E o futebol sempre foi o orgulho nacional. Afinal somos penta campeões, cinco taças do mundo conquistadas ao longo do tempo em competições duríssimas, nas quais mostramos a nossa arte e a nossa fibra.

Organizar a disputa de uma Copa do Mundo de Futebol no século 21 seria motivo de grande orgulho para o país, esperava-se. Além de mostrar ao Mundo a nossa arte e capacidade competitiva com a bola nos pés, ficaria evidente a capacidade de organização de um torneio de futebol que se tornou um desafio para os países-sede na era da globalização. Da sociedade de consumo de massas e do espetáculo. Mais ainda, seria uma forma de apagar as complicadas lembranças do “Maracanazo”, encravadas até hoje na alma dos brasileiros que amam o Futebol : a decepção da final da Copa de 1950, na qual, jogando em casa e pelo empate, fomos derrotados pela seleção uruguaia.

Com todo o acervo de conquistas nas áreas econômica – somos a 6ª economia do Mundo – e social , com o consistente processo de inclusão dos desfavorecidos, teria chegado “a hora dessa gente bronzeada mostrar o seu valor”. Na cadência e no repique do samba e da malemolência. Imaginaram os brasileiros crédulos e ingênuos. Não ocorre assim, entretanto.

O que teria acontecido para que estejam ameaçadas as conquistas da Copa? Estaria havendo a prevalência do discurso ideológico sobre os fatos reais? Em pouco mais de um ano houve uma mudança no sentimento de segmentos específicos da sociedade brasileira sobre a Copa do Mundo de 2014. Afinal, uma festa de congraçamento mundial através do futebol. Uma forma de promover a paz e o entendimento entre povos e nações. A essa altura seria correto indagar: a quem interessa o fracasso da Copa? Por que essa espécie de ódio ao futebol, construído e disseminado em tão curto tempo? Sentimento esse propagado por gente de elevado poder aquisitivo, com grande repercussão nos meios de comunicação, vocalizado por pessoas do âmbito artístico e cultural, mais ou menos famosas. Deixando transparecer algum tipo de articulação mais ampla no discurso e nas ações desses outrora considerados formadores de opinião?

Talvez seja importante rememorar os acontecimentos. A partir do primeiro semestre de 2013 as redes sociais foram surpreendidas pela participação de moças e rapazes que dirigiam mensagens aparentemente inocentes aos internautas brasileiros. Falando um inglês perfeito, com legendas, insistiam para que repetissem uma espécie de mantra sobre a próxima Copa do Mundo: - “a Copa não é importante. Não interessa ao Brasil. O país tem que investir recursos em educação, saúde , mobilidade urbana, segurança pública”. E reforçavam: “- não discutam, não argumentem, apenas repitam. Logo, todos irão entender”! Vieram, em seguida as surpreendentes “manifestações de junho”. Estranhas em seus objetivos e ainda carentes de análises mais sólidas e de interpretações com profundidade política e sociológica.

O que se pode inferir desse estranho movimento na tentativa de desconstrução de um evento de tanta importância para todos os povos amantes do esporte e com tanto significado esportivo e cultural? E tendo como alvo o chamado “país do futebol”? Além dos ousados objetivos de politização /partidarização de um evento esportivo de tal magnitude, percebe-se os indisfarçados movimentos para a construção de mais um mito ideológico da atualidade. Desta feita envolvendo a maior competição esportiva do planeta. Como entender tamanha ousadia? Ou seria tão somente a aposta segura na ingenuidade política dos brasileiros? Repetindo aquele magnata do jornalismo internacional: -“ não perde quem aposta na infantilidade incurável dos seus leitores!”

Este movimento anti-Copa talvez se insira em ações semelhantes, desencadeadas na primeira década deste século, por instituições governamentais e multinacionais, tendo como objetivo a construção de mitos ideológicos, capazes de justificar a criação de preconceitos arraigados e intervenções ,diretas ou indiretas, contra nações, povos e etnias.

Nesse sentido, é oportuno lembrar a estigmatização dos povos árabes como componentes do “eixo do mal”, de acordo com editos do governo americano (período do ex-presidente Bush Jr), conceitos logo repercutidos pela mídia mundial, ressoando a “ameaça islâmica”. Conceitos que tiveram sequência, como o mito da posse de armas químicas pelo Iraque e da urgente necessidade de destruí-las, justificativa para a invasão militar do país pelas forças armadas americanas, também no governo Bush Jr. Mais recentemente, a publicação do livro “Eurábia”, o qual trata da “invasão” da Europa, que estaria sendo perpetrada por árabes e muçulmanos, com o objetivo de gangrenar (sic) o continente europeu para depois dominá-lo. Esse disparate foi assumido como verdade por políticos e intelectuais e tornou-se um dos argumentos do discurso da extrema direita europeia, após sistemática repetição pelos eficientes meios de comunicação e persuasão do Velho Continente. Não é sem razão, portanto, que se fala na “2ª Guerra Fria”.

Voltando ao movimento “Não vai ter Copa”. Toda a lógica do movimento é no mínimo estranha. As “graves acusações” sobre gastos financeiros, repetidas como ponto de percussão pelos meios brasileiros de comunicação e persuasão, embora não sustentadas em fatos concretos, são assumidas como verdades incontestes.

As comparações mais esdrúxulas são feitas, sustentadas por um discurso e retórica vazias, aparentemente estúpidas, mas capazes de mobilizar corações e mentes de brasileiros que acreditam , conforme lhes é ensinado, nos “graves prejuízos” que a realização da Copa trará, certamente ,ao Brasil. Tudo isso em um país que, segundo Nelson Rodrigues, “não apenas joga futebol, mas vive futebol.”

Dia desses, assistindo ao debate sobre a Copa, ouvi do professor Antonio Lassance, da Universidade de Brasília, a frase que, pelo seu bom senso, deveria desestimular alguns ímpetos anti-Copa : “NÃO SE BOICOTAM EVENTOS ESPORTIVOS”. Tornam-se ações inúteis do ponto de vista político. E são coisas ultrapassadas, características da 1ª Guerra Fria.

Texto original: CARTA MAIOR

terça-feira, 20 de maio de 2014

Direito, política e a vedação ao trabalho externo de Dirceu

Barbosa parece querer impor a Dirceu tratamento mais gravoso do que aquele que a lei lhe reservaria, com o bônus de agir quase sempre monocraticamente.

Fábio de Sá e Silva

Quando há aproximadamente um mês, em entrevista à emissora de TV Portuguesa RTP, o ex-presidente Lula afirmou que o julgamento da Ação Penal 470 – o chamado processo do "mensalão" – havia tido muito mais de político que de jurídico, integrantes do Supremo Tribunal Federal trataram de reagir de maneira rápida e desqualificadora.

"Fato grave, que merece o mais veemente repúdio," redarguiu Joaquim Barbosa, no tom em que se acostumou a fazê-lo sempre que se viu questionado, fosse no Plenário da Corte, fosse nas páginas de jornais, por sua conduta como relator daquele caso. "Troço de doido," disse Marco Aurélio, alegando ser impossível medir o jurídico e o político em uma decisão judicial. "Muito engraçado," disse Gilmar Mendes, seguindo na mesma linha de Marco Aurélio.

A precariedade dos limites entre direito e política é questão que sempre animou o pensamento jurídico crítico. E em que pese a tentação de se equipará-los, até mesmo para se denunciar o caráter ideológico das correntes ditas legalistas, mais tarde tornou-se não apenas inevitável, mas também proveitoso reconhecer as diferenças estruturais entre um e outro.

A política, assim – ao menos em sua expressão genuinamente democrática –, aparece como o terreno no qual o triunfo de uma posição depende de sua capacidade de obter adesão, ou seja, de se constituir como objeto de uma maioria. No direito, a ampla aceitação de uma posição (por uma turma de julgadores, por um conjunto de especialistas, ou mesmo pela população em geral) não é suficiente. Tão ou mais importante é que essa posição consiga se legitimar perante um estoque de textos e reflexões que constituem a memória normativa daquela comunidade.

Quer a política, quer o direito, portanto, são veículos de mudança social. Mas cada um deles possui um código próprio, a partir do qual – ao contrário do que diziam Marco Aurélio e Gilmar Mendes – se torna perfeitamente possível avaliar a integridade das decisões que produzem. A adequação da justiça ao direito adiciona-lhe uma camada de legitimidade. Já a subversão do direito pela política contribui para que ambos sejam deslegitimados.

A juridicidade do julgamento do mensalão esteve sob suspeita desde o princípio, quando repórter de jornal flagrou Lewandovski reclamando que, no recebimento da denúncia relativa ao caso, os Ministros haviam votado "com a faca no pescoço".

Alguns anos depois, quando da leitura do relatório por Barbosa, o processo apresentou inúmeras novidades em relação à jurisprudência do próprio STF, por exemplo, quando não admitiu o desmembramento do caso, considerou corrupção o recebimento de recursos sem o correspondente ato de ofício, ou admitiu a condenação de réus sem provas, com alegada base na teoria do "domínio do fato".

Bastaria, porém, que entrasse em pauta o julgamento do "mensalão tucano" para que esses vernizes escorressem e o signo da politização pudesse de novo se manifestar – não sem antes o mesmo Barbosa ter admitido que, na fixação das penas, havia feito uma conta "de chegada", em que as penas pelo crime de "formação de quadrilha" visavam não a reprovação de uma conduta verificada no processo e sim a garantia de que os réus ficariam presos no regime fechado.

Mas nada disso deu tantos sinais de politização do caso quanto o que se passou a ver depois que os réus já estavam condenados, quando Barbosa passou a presidir a execução das penas. Prisões espetaculares, manutenção proposital de presos em regime mais gravoso, substituição de juízes de instâncias interiores e negativa de análise de pedidos de condenados em função de "regalias" nunca, afinal, comprovadas, marcavam a passagem definitiva de um processo baseado no diálogo com a memória normativa para um processo baseado na imposição de vontade.

É nessas circunstâncias e sob essas condições, pois, que se deve avaliar a decisão de Barbosa no pedido de trabalho externo de José Dirceu, que há meses comprovou ter recebido oferta para cuidar da biblioteca de escritório de advocacia em Brasília. Alegando que presos em regime semiaberto devem cumprir ao menos um sexto da pena a fim de que possam ter acesso ao benefício do trabalho externo, Barbosa indeferiu esse pedido.

Juridicamente, porém, esse entendimento já estava completamente superado entre estudiosos e operadores do direito. Em termos legais, a passagem da legislação que requer o cumprimento de um sexto da pena para a obtenção do benefício do trabalho externo (Código Penal, art. 37) se refere não ao regime semiaberto, mas ao fechado. Ao resgatá-la e aplicá-la fora de seu próprio contexto legislativo, Barbosa mais uma vez parece querer impor a Dirceu tratamento mais gravoso do que aquele que a lei lhe reservaria, desta vez com o bônus de agir, na maior parte das vezes, monocraticamente, ou seja, sem a necessidade de se justificar perante seus pares.

Em termos de política criminal e penitenciária, mesmo as exigências em relação ao regime fechado foram flexibilizadas para permitir a ampliação do acesso da população prisional a postos de trabalho, uma possibilidade que as prisões brasileiras não oferecem a contento para regime algum. É por isso que, mesmo o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, que nesse processo atua como "fiscal da lei", mas também como parte, representando o Estado-acusador, manifestou-se favoravelmente à concessão do trabalho externo.

Parece evidente, assim, a forma pela qual Barbosa conduz seus atos à frente do que resta do processo do mensalão. Fora dos holofotes, com o fim de julgamento, e vendo aproximar-se o fim de sua presidência no STF, o Ministro parece empenhado em entrar para a história como quem manteve Dirceu e os outros réus encarcerados pelo maior tempo possível, mesmo quando a lei e nossa memória sobre ela esteja a pedir o contrário.

Mais que o atendimento a um direito individual, no julgamento do recurso que a defesa de Dirceu formulou ao plenário do STF estará em causa a integridade daquela memória em relação à tentativa de imposição da vontade de Barbosa. Permitirão os demais Ministros que o ocaso de Barbosa seja também o ocaso do direito?
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Fábio de Sá e Silva é PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University (EUA) e Professor Substituto de Teoria Geral do Direito da Universidade de Brasília (UnB).

Créditos da foto: Carlos Humberto/SCO/STF

Texto original : CARTA MAIOR

segunda-feira, 19 de maio de 2014

O silêncio ao redor

Intelectuais que sempre fizeram o contraponto progressista reagem agora entre a indiferença e a prostração. Jorge Furtado, pergunta: quando o Brasil foi melhor?

por: Saul Leblon

A impressão de que o governo fala sozinho, cercado por um jogral ensurdecedor, ora raivoso, ora repetitivo, mas de qualquer forma onipresente, não é fortuita.
É isso mesmo, se a percepção se basear apenas na emissão veiculada pelos jornais, tevês e emissoras de rádio que ecoam o monólogo do ‘Brasil aos cacos’.

Mas já foi diferente? Em 1989, talvez, quando o Jornal Nacional editou o famoso debate final da campanha, às vésperas do voto? Ou em 2002, quando George Soros assegurava, com exclusividade para a Folha, que era Serra ou o caos?

Talvez em 2006, sob o cerco do ‘mensalão’? Ou então em 2010, quando a Folha se lambuzou na ficha falsa da Dilma e Serra convocou Malafaia como procônsul para assuntos relativos a moral e aos bons costumes?

Então o que mudou para que o ar pareça tão mais carregado, a ponto de ser necessário, às vezes, cortar com faca o noticiário para enxergar além da derrocada iminente que se anuncia?

Algumas coisas.

Vivemos uma transição de ciclo econômico.

Em parte pela reversão do quadro internacional, em parte pelo esgotamento de suas dinâmicas internas, o desenvolvimento brasileiro terá que se repensar para retomar uma trajetória de longo curso.

Trata-se de recompor as condições de financiamento da economia. E depurar prioridades em direção à maior eficiência logística e melhor qualidade de vida.

Não é café pequeno.

A expectativa provoca arrepios nas carteiras graúdas.

Não será mais possível, por exemplo, prosseguir apenas com o impulso das exportações de commodities, cujos preços triplicaram no mundo desde 2003 --os do petróleo quadruplicaram, mas os agrícolas cresceram mais de 50%.

Tampouco a liquidez internacional promete ser tão generosa a ponto de dissipar as contradições internas em um jorro de crédito apaziguador que tudo sanciona.

Os donos do dinheiro precificam as ameaças incrustradas nesse duplo esgotamento, que escancara a natureza paralisante da hegemonia rentista sobre o país.

Dispostos a não ceder, operam a plenos decibéis para sufocar a evidência de que seu privilégio entrou na alça de mira de uma encruzilhada histórica.

Aconteceu antes, em 32 e 53 – quase como uma revolução burguesa à revelia das elites; foi resolvido com o patrocínio do capital estrangeiro em 55; reprimido em 64; ordenado ditatorialmente nos anos 70 e terceirizado aos livres mercados nos anos 90.

A seta do tempo ensaia um novo estirão.

O desafio, antes de mais nada, é de natureza política.

A coerência macroeconômica da travessia será dada por quem reunir força e consentimento para assumir a hegemonia do processo.

Não por acaso, na abertura do 14º Encontro dos Blogueiros e Ativistas Digitais, nesta 6ª feira, Lula resumiu tudo isso em uma frase:

‘Sem reforma política não faremos nada neste país’. 

E ela terá que ser construída pela rua. ‘Por uma Constituinte exclusiva’, adicionou o ex-presidente da República: ‘Porque o Congresso que está aí pode mudar uma vírgula aqui, outra ali. Mas não a fará’.

Não é um capricho ideológico.

Trata-se de dar consequência institucional às demandas e protagonistas que iniciaram a longa viagem à procura de um outro país, a partir das greves metalúrgicas do ABC paulista, nos anos 70/80.

E que agregaram mais 60 milhões de brasileiros pobres a esse percurso desde 2003.

Um passaporte da travessia consiste em regenerar a base industrial brasileira.

E tampouco aqui é contabilidade.

Para a economia gerar empregos e salários de qualidade, ademais de receita fiscal compatível com as urgências sociais e logísticas, é vital recuperar o principal polo irradiador de produtividade em um sistema econômico.

O pressuposto para um aggiornamento industrial é juro baixo, câmbio desvalorizado e controle de capitais.

Grosso modo, esse é o tripé que afronta o outro, da alta finança, baseado em arrocho fiscal, câmbio livre e juro alto.

Todo o círculo de interesses que orbita em torno do cassino está mergulhado até o pescoço na guerra preventiva contra o risco de uma reciclagem subjacente à eleição de outubro.

Essa é uma singularidade que distingue e radicaliza a presente disputa sucessória --feita em condições internacionais adversas-- a ponto de tornar o ar quase irrespirável.

Por trás dos ganidos emitidos pelo colunismo isento (ideológicos são os blogueiros) há um cachorro grande a soprar seu bafo sobre o cangote da sociedade.

O capital rentista.

Ele lucrou, limpo, acima da inflação, 18,5% em média, ao ano, no segundo governo FHC.

Faturou 11,5%, em média, no segundo governo Lula.

E, já impaciente, entre 3,5% e 5% agora, sob a gestão Dilma.

Estamos falando de massas de forças nada modestas.

Diferentes modalidades de fundos financeiros somaram um giro acumulado de R$ 2,4 trilhões no Brasil em 2012.

O valor equivale a mais da metade do PIB em direitos sobre a riqueza real --sem triscar o pé no chão da fábrica.

Não é um país à parte. Mas se avoca mordomias equivalentes às desfrutadas pelas tropas de ocupação.

Entre elas, rendimentos sempre superiores à variação do PIB, portanto, em detrimento de fatias alheias. E taxas de retorno inexcedíveis -- dividendos permanentes de dois dígitos, por exemplo-- a impor um padrão de retorno incompatível com a urgência do novo ciclo de investimento que o Brasil reclama.

Não se mantém uma tensão desse calibre sem legiões armadas.

Pelotões de estrategistas, exércitos de consultores, artilharias acadêmicas, bancadas legislativas, cavalarias midiáticas e aliados internacionais operam a seu serviço. 

O conjunto entrou em prontidão máxima.

Um pedaço da hegemonia que vai ditar o novo arranjo macroeconômico será decidido nas eleições de outubro.

O embate escorre do noticiário especializado (isento como uma nota de três reais) para os espaços onde os cifrões são traduzidos em duelos entre o bem e o mal, entre corruptos e salvadores da pátria, intervencionistas e liberais, desgoverno e eficiência.

Daí são mastigados para o varejo do martelete conservador.

Nesse ambiente de beligerância em que o governo parece falar sozinho, a explosão de demandas que buscam carona na visibilidade da Copa do Mundo, apenas reafirma uma transição de ciclo, incapaz de ser equacionado por impulsos corporativos ou bandeiras avulsas, ainda que justas (leia mais sobre esse tema no blog do Emir).

‘Não vai ter Copa’ figura como o arremedo de uma unidade tão frágil quanto a aritmética subjacente à ideia de que os males do país se resolvem com os R$ 8 bilhões financiados às arenas do torneio --que serão pagos, ressalte-se.

No evento da sexta-feira, em São Paulo, Lula lembrou aos blogueiros que desde que começaram as obras da Copa, em 2010, o governo investiu R$ 825 bi em saúde e educação.

E, todavia, a escola pública e o SUS persistem com as lacunas sabidas.

O buraco é mais amplo.

O Brasil se confronta com o desafio de realizar grandes reformas que lhe permitam erguer as linhas de passagem entre o inadiável e o viável num novo ciclo de crescimento.

Menos que isso é dar à edição conservadora suprimentos para martelar a ideia de uma sociedade em decomposição.

Durante muito tempo a percolação desse veneno teve na comunicação do governo um filtro complacente.

Agora se sabe que essa inércia escavou também um corredor contagioso no ambiente cultural, a ponto de tornar adicionalmente opressivo o ar desta sucessão presidencial.

Um pequeno exemplo ilustra os demais.

Em entrevista recente à televisão portuguesa, o cantor Ney Matogrosso esboçou um cenário de terra arrasada para descrever o Brasil.https://www.youtube.com/watch?v=DqJ0kF1_oL0. De sobremesa, soltou agudos de visceral rejeição à política, aos políticos e ao PT.

O problema não é um cantor deblaterar contra o governo.

O problema é a ausência de contraponto ao redor, num momento em que interesses graúdos se empenham em vender a tese de que a melhor saída para o Brasil é andar para trás.

Em diferentes capítulos da história do país, o prestígio de seus intelectuais e artistas foi decisivo no repto ao cerco asfixiante com o qual o conservadorismo tentava, como agora, legitimar, ou impor, a receita de arrocho subjacente as suas propostas para os impasses nacionais.

Antes tarde do que nunca, o PT e suas maiores lideranças correm contra o tempo para corrigir o gigantesco erro político que foi subestimar o papel de uma mídia plural na luta pela ampliação da democracia brasileira .

Passa da hora de acordar também para a necessidade de reativar o diálogo com círculos intelectuais e artísticos, cujo protagonismo foi igualmente subestimado por uma concepção mecânica e economicista de desenvolvimento.

O sequestro da opinião pública pelo denuncismo conservador --que radicalizou um clima de indiferença e prostração semeado pelo próprio recuo do PT no ambiente intelectual -- evidencia o tamanho do equívoco cometido.

Leia, abaixo, a manifestação do cineasta Jorge Furtado (diretor do recém lançado ‘Mercado de Notícias’ e Urso de Prata em Berlim, em 1990, com ‘Ilha das Flores’) sobre esses acontecimentos, que marcam e vão marcar o ar pesado da disputa eleitoral de 2014.

'A mim não enrolam' , diz o diretor gaúcho que questiona em seu blog a tese de que o Brasil nunca esteve tão mal: pior em relação a quando e, sobretudo, para quem, argui. http://casacinepoa.com.br/)

O desafio do campo progressista é expandir essa argúcia solitária. 

A íntegra do texto de Jorge Furtado:

"Fico triste ao ver artistas brasileiros, meus colegas, tão mal informados.

Imagino que, com suas agendas cheias, não tenham muito tempo para procurar diferentes fontes para a mesma informação, tempo para ouvir e ler outras versões dos acontecimentos, isso antes de falar sobre eles em entrevistas, amplificando equívocos com leituras rasas e impressionistas das manchetes de telejornais e revistas ou, pior, reproduzindo comentários de colunistas que escrevem suas manchetes em caixa alta, seguidas de ponto de exclamação.

Fico triste ao ler artistas dizendo que não dá mais para viver no Brasil, como se as coisas estivessem piorando, e muito, para a maioria. Dizer que não dá mais para viver no Brasil logo agora, agora que milhões de pessoas conquistaram alguns direitos mínimos, emprego, casa própria, luz elétrica, acesso às universidades e até, muitas vezes, a um prato de comida, não fica bem na boca de um artista, menos ainda de um artista popular, artista que este mesmo povo ama e admira. 

Em que as coisas estão piorando? E piorando para quem? Quem disse? Qual a fonte da sua informação?

Fico triste ao ouvir artistas que parecem sentir orgulho em dizer que odeiam política, que julgam as mudanças que aconteceram no Brasil nos últimos 12 anos insignificantes, ou ainda, ruins, acham que o país mudou sim, mas foi para pior. 

Artistas dizendo que pioramos tanto que não há mais jeito da coisa "voltar ao 'normal '", como se normal talvez fosse ter os pobres desempregados ou abrindo portas pelo salário mínimo de 60 dólares, pobres longe dos aeroportos, das lojas de automóvel e das universidades, se "normal" fosse a casa grande e a senzala, ou a ditadura militar. Quando o Brasil foi normal? Quando o Brasil foi melhor? E melhor para quem?

A mim, não enrolam. Desde que eu nasci (1959) o Brasil não foi melhor do que é que hoje. Há quem fale muito bem dos anos 50, antes da inflação explodir com a construção de Brasília, antes que o golpe civil-militar, adiado em 1954 pelo revólver de Getúlio, se desse em 1964 e nos mergulhasse na mais longa ditadura militar das américas. Pode ser, mas nos anos 50 a população era muito menor, muito mais rural e a pobreza era extrema em muitos lugares. Vivia-se bem na zona sul carioca e nos jardins paulistas, gaúchos e mineiros. No sertão, nas favelas, nos cortiços, vivia-se muito mal.

A desigualdade social brasileira continua um escândalo, a violência é um terror diário, 50 mil mortos a tiros por ano, somos campeões mundiais de assassinatos, sendo a maioria de meninos negros das periferias, nossos hospitais e escolas públicos são para lá de carentes, o Brasil nos dá motivos diários de vergonha e tristeza, quem não sabe? Mas, estamos piorando? Tem certeza? Quem lhe disse? Qual sua fonte? E piorando para quem?"

Texto original em : CARTA MAIOR

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Vai ter Copa: resposta à grande aliança

O patético manifesto deixado pelos autores do atentado contra a embaixada do Brasil em Berlim é um misto de desinformação, má fé e de devaneio político.

Marco Aurélio Garcia

Desde Berlim, onde reside há alguns anos, Flávio Aguiar nos escreve, em Carta Maior, sobre o recente apedrejamento da Embaixada brasileira na Alemanha em protesto contra a realização da Copa do Mundo no Brasil.

O patético manifesto deixado pelos autores do atentado – misto de desinformação, má fé e de devaneio político – se insere, como explica Aguiar, em uma campanha cuidadosamente articulada pela mídia conservadora e pelo establishment financeiro europeus contra o Brasil e o Governo brasileiro. Baluartes importantes dessa mobilização têm sido o FINANCIAL TIMES e a ECONOMIST.

Um exame mais detalhado da situação permitiria incorporar outros atores, dentre eles o SPIEGEL, na Alemanha, que há bem pouco vituperou contra o Mundial-2014 no Brasil. Até o conservador EL MERCURIO, do Chile, se somou à campanha.

Não se trata, assim, de um movimento puramente europeu. Uma zapeada na maioria das televisões globais ou a leitura de jornais e revistas internacionais revelam a extensão e profundidade que esta campanha atingiu, reunindo paradoxalmente meios conservadores da City londrina, e adjacências, a grupos supostamente revolucionários que, na impossibilidade de reverter a tragédia econômica e social em que está mergulhada a Europa, decidiram pontificar lições além-mar.

Deve incomodar muito, em um continente assolado pelo desemprego, que a Copa se realize em um país que apresenta hoje os mais altos índices de emprego no mundo e cujo salário mínimo aumentou 70% acima da inflação na última década.

Da mesma forma, é constrangedor ver manifestações em uma Europa combalida pelo desmonte do Estado de Bem-Estar contra um país que tem dado passos importantes na construção de uma sociedade mais próspera, igualitária e democrática.

O Brasil dispensa essas lições, sobretudo quando provenientes de uma aliança tão “heterogênea” como esta a que estamos assistindo.

Conhecemos bem os ardis da História. Em fins dos anos 20 e início da década de 30, do século passado, ocorreu um trágico desencontro das esquerdas alemãs. Comunistas e Socialdemocratas se acusavam mutuamente, enquanto a extrema direita se apropriava de grande parte das classes trabalhadoras alemãs, mergulhadas que estavam no desalento e na perplexidade política. Quem pagou esta conta não foram somente os alemães, mas a humanidade inteira.

Não se pode negar que ouvimos a voz das ruas no Brasil. Não somente durante as manifestações de 2013, mas nos quase 12 anos em que Lula e Dilma Rousseff governaram e governam o país.

No Brasil, nesse período, iniciamos a construção de uma sociedade mais igualitária e democrática. Caminho difícil de ser percorrido, tendo em vista a pesada herança interna de décadas que nos foi legada, o difícil contexto internacional dos últimos anos e também – temos de reconhecer – nossos erros e deficiências.

Sabemos que a transformação que o povo e o Governo brasileiros estão realizando não coincide com o roteiro previsto em muitos textos “clássicos”. Mas sabemos também que a mudança tem sido suficientemente importante para deixar profundamente preocupadas as classes dominantes locais e, sobretudo, internacionais.

Vamos continuar neste caminho.

E vai ter COPA.

Texto original : CARTA MAIOR

terça-feira, 13 de maio de 2014

Anunciando calamidade hídrica, Consórcio PCJ busca recursos do governo federal

Consórcio PCJ pede ao DAEE e ANA que decretem calamidade hídrica e solicita recursos ao governo federal para recuperação das Bacias Alto Tietê e PCJ

Cibele Buoro

Desde o dia do primeiro alerta para a estiagem severa que estava por vir, a Sabesp, autorizada pelo governador Geraldo Alckmin, "manteve os níveis de captação como se estivessem em situação de normalidade", lembra a promotora do Grupo de Atuação Especial do Meio Ambiente (Gaema) do Ministério Público de São Paulo Alexandra Facciolli Martins.

No Manifesto Salve o Cantareira do dia 25 de abril o Consórcio das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ) teve como um dos objetivos alertar o governo federal para a situação emergencial da região e cobrar das agências gestoras dos recursos hídricos -Agência Nacional das Águas (Ana) e Departamento das Águas e Energia Elétrica (Daee) - que decretassem imediatamente calamidade hídrica para mobilizar recursos financeiros direcionados para a recuperação das bacias do Alto Tietê e PCJ.

A falta de planejamento e investimentos desnudaram a real situação da gestão dos recursos hídricos do Estado de São Paulo. Os projetos que só agora saem do papel são antigos, alguns datados dos anos 70. A necessidade de ampliação da oferta de água para São Paulo é há muito tempo conhecida pelo governo, diz José Teixeira Filho, professor da Faculdade de Engenharia Agrícola da Unicamp e membro do grupo de pesquisa do Cantareira.



Em 2004, quando foi renovada a outorga por mais dez anos para que a Sabesp continuasse captando do Sistema Canteira, documento expedido pela Portaria DAEE 1213/2004 determinava a redução da dependência desses volumes. Estudos do Consórcio PCJ concluem que, para atender o crescimento populacional na RMSP a Sabesp deveria ter aumentado a sua oferta hídrica em 25 m3 por segundo, exatamente as vazões que utilizou nos últimos quatro anos. Entre os projetos para ampliação da quantidade de água disponível, cogita-se em retomar o projeto dos 7 reservatórios do Vale do Ribeira, talvez não sendo viável a construção de todos por motivo das muitas ocupações que ocorreram nos últimos anos, porém, o suficiente para reduzir a dependência do Sistema Cantareira. Mesmo com outras fontes como a represa de Guarapiranga, a RMSP permaneceu do início da crise, anunciada em julho de 2013, até março de 2014, retirando 31 m3 por segundo, provocando a falência dos reservatórios.

Quando questionamos a Sabesp sobre a possibilidade de as chuvas não acontecerem repetindo o final de 2013, e o não racionamento causar uma situação ainda mais grave, Helio Figueiredo revela ter como prioridade a Grande São Paulo: “Você tem que pensar também que deixar diretamente 9 milhões sem o abastecimento do Cantareira, e indiretamente 22 milhões, causa um problema na cidade, uma situação de crise generalizada”. Segundo o ambientalista José Furtado, é preciso chamar a atenção para o fato de a Sabesp, embora atenda municípios da Bacia PCJ, só centralizar a discussão na Grande São Paulo. “Lá há o paliativo de uso da Billings e Guarapiranga”. E o PCJ não tem alternativa.

(Sistema Cantareira seco. Créditos: Consórcio PCJ)
Depois da redução das vazões para São Paulo Helio Figueiredo declara que há racionamento em São Paulo: “De uma certa forma o racionamento já está sendo feito, de certa forma não, já está sendo feito. A Sabesp tirava 31m3 por segundo do sistema Cantareira e mais 2 m3 do Sistema Alto Tietê, que faz parte do Sistema Cantareira com autorização dos órgãos gestores. Hoje já foi reduzido para 24,7 (e no dia 30 de abril para 22,4 m3 por segundo) e existe a possibilidade de reduzir ainda mais”.

José Furtado, do Campinas Que Queremos, chama atenção para o nível de rebaixamento das represas dos últimos três anos. No início de 2012, o sistema estava a 75% da capacidade, em 2013 a 50% e finalmente no início deste ano em 25%. Portanto, caso se repetissem os perfis pluviométricos dos anos anteriores, considerados normais, ainda assim chegaríamos ao fim do ano com nova queda de 25%, ou seja, zero. "Um gestor responsável, minimamente atento a este comportamento e se deparando com a estiagem de dezembro e janeiro, teria tomado atitudes sérias no sentido da redução do consumo como forma de prolongar a duração das reservas. Pelo contrário, o governador Alckmin repetidamente interpelado, insistiu na negativa de racionamento, dando ao cidadão a segurança de que não haverá desabastecimento".

E diante do iminente risco de desabastecimento, o Consórcio PCJ faz mais um alerta: é necessário que haja a redução drástica do consumo de água nas Bacias do Alto Tietê e PCJ, redução de perdas, e disponibilização imediata de recursos financeiros para obras de interligações entre adutoras e reservatórios urbanos. “São alternativas viáveis, só que precisamos que BNDES, Ministério das Cidades e outros organismos tenham um olhar para a liberação de recursos, com todas as exigências que julgarem necessárias, nós estamos dispostos a atender essas exigências”, diz Lahóz. 

Créditos da foto: Consórcio PCJ

Texto original: CARTA MAIOR

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Mesmo com ações em queda, estratégia da Sabesp é minar eleição do PT em SP

As explicações para a resistência à decretação do racionamento residem na estratégia política para garantir a permanência de Alckmin.

CIbele Buoro


Desde o início do ano, as ações da Sabesp já despencaram mais de 26%, uma das maiores baixas. "Se o PT vencer em São Paulo será desastroso para a Sabesp", diz o analista da Lopes Filho & Associados, Consultores de Investimentos, situada no Rio de Janeiro, Alexandre Montes.

As explicações para a resistência à decretação do racionamento pelo governo do Estado e a opção pelo uso do volume morto residem justamente na estratégia política para garantir a permanência de Alckmin frente ao governo do Estado de São Paulo. "Alckmin é uma liderança pró-mercado e, se o PT vencer, isso pode mudar e os negócios da Sabesp correrão riscos, como por exemplo, o que tem acontecido com a Eletrobrás (referindo-se aos descontos nas tarifas de energia elétrica decretados pelo governo federal), que amargou prejuízos de treze bilhões de reais”.

Sobre o governo "pró-mercado", diz Montes: "É o governo que administra os negócios de modo a garantir a máxima riqueza aos acionistas". Na avalição de Montes, o governo Alckmin erra ao não decretar o racionamento. "A irresponsabilidade não está no falta de investimento por parte da Sabesp, e sim, em não decretar o racionamento que já deveria estar em andamento. Há a necessidade do racionamento que não é feito por razões políticas", diz o analista, que chama de "catastrófico" o fato de os reservatórios estarem abaixo de 10% de suas capacidades. 

"O que está em jogo é o Estado de São Paulo. O PT ganhou as três eleições presidenciais de modo muito fácil, mas não consegue ganhar na capital paulista", continua o analista. "Não haverá racionamento antes das eleições, o que é uma enorme irresponsabilidade. A Sabesp vai usar o volume morto para que tenha água até as eleições". Sobre as perspectivas de mais quedas nas ações, o analista diz: "Quanto cai mais eu não sei, a tendência é de queda, mas não deve ser muito, já caiu bastante". E conclui: "Racionamento não é o problema, o problema é o PT assumir, que é um risco para a Sabesp".

O outro lado negócio, segundo o ambientalista e coordenador do instituto Campinas Que Queremos, José Furtado, é a Sabesp ter como compromisso o fornecimento de um bem essencial à vida e não de um simples bem de consumo com reflexos na bolsa de valores. "Estamos falando de vida, de saúde, de direito da população ao serviço de água para o qual a empresa foi contratada. Além de todo o prejuízo direto que a sociedade terá de arcar, há os indiretos, uma vez que indústrias terão de reduzir a produção, as demissões decorrentes, o aumento do preço dos alimentos que terá produção reduzida, enfim, problemas sociais que vão muito além do banho de caneca".

Região do PCJ exige que São Paulo reduza sua dependência do Cantareira
Helio Rubens Figueiredo é assessor da presidente da Sabesp, Dilma Pena. Em entrevista para Carta Maior, no dia 25 de abril, durante o Manifesto Salve o Cantareira, Figueiredo foi questionado sobre a cobrança por parte dos municípios que integram a região do PCJ para que a Sabesp reduza sua dependência de retirada de água do Sistema Cantareira. Sua resposta foi: "Os 31 m3 que saem daqui são fundamentais para o abastecimento de São Paulo". "Não há como reduzir, portanto?", insiste a reportagem. "Não há como reduzir. São Paulo tem uma disponibilidade hídrica de 200 m3, a ONU recomenda que o básico razoável 1.500 m3 por habitante ano. A situação da região metropolitana é crítica, embora a situação do PCJ também seja".

A Grande São Paulo é abastecida pelo Sistema Cantareira desde 2004, quando a Sabesp obteve autorização por meio da Portaria nº 1213, de 6 de agosto de 2004, do DAEE do Estado de São Paulo, para transposição das águas das Bacias PCJ, pelo prazo de 10 anos. O prazo expirava em 6 de agosto de 2014. Por razão da crise hídrica e do calendário eleitoral envolvendo a disputa pela água, o Consórcio PCJ aguarda documento oficial da ANA e DAEE confirmando a transferência da renovação da outorga para 6 de agosto de 2015.

Antes da crise hídrica que acomete o sudeste, o Cantareira vinha contribuindo com o fornecimento de aproximadamente 33 m3 por segundo para a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), garantindo água para quase 9 milhões de pessoas nas zonas norte, central, parte da leste e oeste da Capital e nos municípios de Franco da Rocha, Francisco Morato, Caieiras, Guarulhos (parte), Osasco, Carapicuíba, Barueri (parte), Taboão da Serra (parte), Santo André (parte) e São Caetano do Sul.

Se a renovação da outorga ocorrer de fato em 2015, Figueiredo já adianta que não há como abrir mão dos 31 m3 e nem redução da dependência do Cantareira. "São Paulo precisa dessa água. Hoje existe uma sintonia fina entre o que é produzido de água na região metropolitana e o que é consumido pela população. Se reduzir essa oferta uma parte da população ficará sem água". 

O executivo da Sabesp explica que, no estudo da macro metrópole encomendado pelo governo do Estado, foi detectado quais seriam as áreas possíveis para construção de reservatórios. "Todas as áreas estão ocupadas com reservatórios. A Sabesp tem um conjunto de reservatórios dentro da região metropolitana que é responsável por minimizar o problema crítico de abastecimento". Ressalta Figueiredo: "Não existe mais área nenhuma em São Paulo onde se possa ampliar o abastecimento, tanto é que o novo projeto é trazer água do Vale do Ribeira, a mais de 100 km de São Paulo a um custo altíssimo".

Áreas de mananciais invadidos por ocupações irregulares, esgoto, lixo. Por não preservar seus rios, São Paulo tem buscado água de lugares cada vez mais distante. E terá de ser assim, a RMSP não tem alternativa mesmo, confirma o professor da Faculdade de Engenharia Agrícola da Unicamp e membro do grupo de pesquisa do Cantareira, José Teixeira Filho. Explica ele que São Paulo não protege seus mananciais e tem dificuldade em controlar a ocupação da região. "Veja o caso do Guarapiranga. São Paulo tem uma demanda enorme por área e as invasões vão continuar a ocorrer e, por outro lado, o custo para atender a população com oferta de água é alto e exige muita infraestrutura".

Buscar água de regiões cada vez mais distantes é a única carta na manga da RMSP. "São Paulo não tem alternativa desde 2004 e de lá para cá nada foi proposto para reduzir a dependência do Cantareira e nem há projetos de longo prazo para isso", ressalta Teixeira Filho, que acrescenta: "não foram feitos investimentos para aumentar a oferta hídrica. A água não está na pauta de prioridades do governo do Estado de São Paulo quando deveria ser prioridade".

No evento da SANASA, em meados de abril, em Campinas, o presidente da ANA, Andreu, alertou sobre a incapacidade das concessionárias de água de cuidarem dos mananciais. "As empresas de saneamento, na minha opinião, estão no limite da prestação do serviço. É impressionante que as empresas de saneamento, durante a votação do Código Florestal, tenham se aliado ao setor ruralista no sentido de que poderiam acabar com as Áreas de Proteção Ambiental. Uma APP é um bom lugar para se fazer uma estação de tratamento e adutora".

Créditos da foto: Consórcio PCJ

Texto original: CARTA MAIOR

terça-feira, 6 de maio de 2014

Quem precisa de um Carlinhos Cachoeira?

A imprensa brasileira é, cada vez mais, uma terra sem lei, onde certos agentes políticos e jornalistas assumem práticas ilícitas como coisa corriqueira
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Najla Passos

Brasília - A parceria entre o bicheiro Carlinhos Cachoeira, políticos de oposição e veículos de imprensa ruiu, depois que uma CPI Mista, instalada em 2012 pelo Congresso Nacional, desmascarou a que interesses ela servia. Carlinhos Cachoeira foi preso, o ex-senador pelo DEM Demóstenes Torres perdeu seu mandato, mas a imprensa continuou impune. E sem punição, transformou o mal feito em escola: a velha fórmula de obtenção ilegal de imagens permanece sustentando pretensas reportagens dos jornalões.

Em 2011, o ex-ministro José Dirceu teve sua intimidade violada, no hotel em que residia, em Brasília, por imagens publicadas pela revista Veja. A “justificativa” da revista era mostrar que, mesmo afastado do governo, ele continuava a receber autoridades da República para “conspirar” contra a presidenta Dilma Rousseff, acusação que a reportagem José Dirceu mostra que ainda manda em Brasília em nada contribui para comprovar, em um texto todo ele baseado em ilações. 

O repórter Gustavo Ribeiro até que tentou conseguir algum fato concreto para sustentar a manchete, só que por meio de prática criminosa. Chegou a ser denunciado à Polícia pela direção do hotel, que o flagrou tentando invadir o quarto de Dirceu. Não deu em nada. Só mais tarde, com a explosão das denúncias contra a quadrilha de Cachoeira, ficou claro que a organização clandestina teve participação na obtenção das imagens veiculadas por Veja, assim como influiu no enfoque de várias outras reportagens.

Escutas obtidas com autorização judicial comprovaram que Policarpo Junior, diretor da sucursal da revista em Brasília, mantinha contato periódico com Cachoeira e outros membros da quadrilha para discutir pautas da revista. O assunto foi fartamente explorado pela CPI criada para investigar as relações escusas de Cachoeira com políticos. Os jornalistas envolvidos com a máfia chegaram a ser apontados no parecer do relator, deputado Odair Costa (PT-MG), conforme noticiou Carta Maior na reportagem “Quem são e o que fazem os jornalistas de Cachoeira”. No relatório final, porém eles foram isentos de responsabilidades.

Na semana passada, o mesmo José Dirceu, que agora cumpre pena no Complexo Penitenciário da Papuda, foi novamente vítima da publicação de imagens ilegais, obtidas durante uma visita da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, dessa feita publicadas pelo jornal Folha de São Paulo. E de forma ainda mais grave, já que a Lei de Execuções Penais é clara ao determinar que a intimidade do preso deva ser preservada. Além de que a juíza da Vara de Execuções Penais, Débora Valle de Brito, havia autorizado a visita com a condição de que não fossem feitos registros em fotos ou vídeos.

O Governo do Distrito Federal (GDF) abriu sindicância para apurar responsabilidades, mas é certo que o autor entrou na unidade penitenciária junto com os parlamentares que fizeram a visita. Em ofício encaminhado à juíza para esclarecer os fatos, a CDH descreve quem eram os membros da comitiva, entre deputados e assessores, e aponta quais dos últimos atenderam à determinação de aguardar na sala do diretor, enquanto apenas os parlamentares se deslocavam até a cela de Dirceu. O documento deixa claro que um deles descumpriu a ordem.

Trata-se do assessor técnico da Liderança do PPS, Wiliam Pereira dos Passos, que, na ocasião, acompanhava o deputado Arnaldo Jordy (PPS-PR). Dois dos cinco deputados presentes afirmaram à Carta Maior que viram um assessor de Jordy na cela de Dirceu. Houve uma confusão inicial em relação ao nome do suspeito, visto que o secretário parlamentar de Jordy, Vicente Bezerra, também participou da comitiva. Mas os outros assessores que aguardaram na sala da direção confirmaram que Bezerra estava com eles. William, não.

William, assessor do PPS, é casado com uma jornalista da Rádio CBN, que é amiga do repórter fotográfico da Folha de S. Paulo, Alan Marques, que assina a reportagem que apresentou o vídeo ao país. O episódio, certamente, não será pauta de nova CPI. Mas os resultados da investigação conduzida pelo GDF serão encaminhados à Corregedoria da Câmara, que poderá ou não determinar punição para o culpado. No máximo, a responsabilidade recairá sobre um dos elos da parceria que resultou na publicação do vídeo.

A imprensa, sem dúvida, seguirá com as mesmas práticas. No Brasil, como se sabe, não há nenhuma lei que regulamente o exercício profissional do jornalismo. Sequer o direito de resposta, princípio sagrado da profissão, está respaldado. Também não há nenhum controle dos veículos de comunicação, nem mesmo daqueles que são concessões públicas, os canais de rádio e TV. A imprensa brasileira é, cada vez mais, uma terra sem lei, onde certos agentes políticos e jornalistas assumem práticas ilícitas como coisa corriqueira. E se entendem entre si, sem sequer precisar terceirizá-las para bandos ou quadrilhas, como no passado. Em um cenário desses, quem precisa de um Carlinhos Cachoeira?

Texto original: CARTA MAIOR